A forma do especismo

Corpo do Homem Anfíbio foi baseado em O Monstro da Lagoa Negra 
(Creature from the Black Lagoon, 1954) (Foto: Fox Searchlight Pictures / Reprodução)


[ATENÇÃO: O TEXTO ABAIXO CONTÉM SPOILERS, INFORMAÇÕES SOBRE O FILME]


Por Paulo Furstenau*


Recordista de indicações ao Oscar 2018 (13 categorias, incluindo melhor filme, direção e roteiro original), A Forma da Água (The Shape of Water, 2017) pode ser considerado uma fábula sobre o especismo. O documentário Terráqueos (Earthlings, 2005) faz a seguinte definição do termo: “Humanos, portanto, não sendo a única espécie no planeta, compartilham este mundo com milhões de outras criaturas vivas, já que todos nós evoluímos aqui juntos. Contudo é o terráqueo humano que tende a dominar a Terra, frequentemente tratando outros terráqueos e seres vivos como meros objetos. Isso é o que significa especismo”. 

Com base nesse pensamento antropocêntrico, os humanos cometem diariamente as maiores atrocidades contra os animais: nos matadouros, granjas, indústria de laticínios, fazendas de peles, laboratórios, criações de cães e gatos de raça (saiba mais aqui), rodeios, rinhas, vaquejadas, zoológicos, circos, aquários (leia aqui sobre outros locais onde animais são explorados para “entretenimento” humano) e muitos outros lugares - até mesmo nas ruas e dentro de casa - e situações. E quando dizemos "humanos cometem", nos referimos não só a quem faz o mal em si, como também ao "consumidor" dos resultados dessas crueldades, que as julgam naturais, pois acreditam que animais devem servir aos humanos.

“As lagostas são cozidas bem aqui. Elas gritam um pouco, mas são muito macias e doces”, 
diz esse homem, em uma bastante comum demonstração humana de desprezo pela dor 
e sofrimento de criaturas sencientes (Foto: Fox Searchlight Pictures / Reprodução)


Dirigido, escrito e produzido por Guillermo del Toro, A Forma da Água conta a história de uma criatura híbrida de humano com anfíbio, capturada por militares norte-americanos na Amazônia. Eles a levam para um centro de pesquisas nos EUA, onde anunciam sua chegada para os funcionários como um novo bem material, uma propriedade, da empresa. Como o filme se passa no período da Guerra Fria, não tarda para que aquele ser vivo se torne mais um elemento de disputa entre EUA e União Soviética. 

Infiltrado entre os norte-americanos, um cientista russo alega que a ciência teria muito a aprender com o Homem Anfíbio (sua forma de respiração dentro e fora d’água poderia ensinar sobre a respiração dos astronautas no espaço), mas seus compatriotas querem que ele o mate, evitando assim que seus inimigos tenham esse possível trunfo científico nas mãos. Mas o espião discorda: “Não quero que uma criatura complexa e bela, inteligente, capaz de se comunicar e entender emoções, seja destruída”. 

Embora o cientista espião defenda a vida do Homem Anfíbio, não fica claro até então sobre como ele acha que a ciência poderia aprender com a criatura. O fato é que aquele ser não estava sendo observado em seu ambiente, livre e podendo exercer seu comportamento natural, e sim preso em um tanque, assim como tubarões, baleias, golfinhos e outros animais aquáticos trancafiados em aquários e ainda expostos à curiosidade de pessoas sem nenhuma consciência sobre a atrocidade daquele confinamento. Dentro da prisão, o que viria a seguir para essa compreensão humana sobre a criatura? O mesmo que ocorre com as cobaias de laboratórios? (Leia aqui matérias sobre testes e vivissecção.) 

Além da captura e encarceramento, outra violência já acontecia pelas mãos do militar raptor, que acorrentou o Homem Anfíbio para lhe eletrocutar com uma vara de choque elétrico de alta voltagem para gado. “Aquela coisa pode parecer humana porque anda com as duas pernas, mas nós fomos criados à imagem do Senhor. E você não acha que aquilo se parece com Deus, né? Deus se parece humano”, diz ele, como um típico humano presunçoso que se considera superior às demais espécies, além de ressentido pelo fato de que aquele ser era adorado como um deus pelos indígenas da Amazônia. 

O Homem Anfíbio é torturado com o mesmo instrumento usado para eletrocutar bovinos 
(Foto: Fox Searchlight Pictures / Reprodução)


Mas uma das faxineiras do centro de pesquisa, Elisa (Sally Hawkins, em uma atuação que lhe rendeu a indicação ao Oscar de melhor atriz), se encanta pela criatura. Primeiramente, ela se compadece daquele ser vivo aprisionado. Em um segundo momento, se identifica com ele, por ser mudo como ela. E Elisa decide libertar o Homem Anfíbio. 

A heroína do filme pede então a ajuda de seu melhor amigo, Giles (Richard Jenkins, indicado ao Oscar de ator coadjuvante pelo papel), no resgate. Amargurado pela vida, Giles nega, alegando: “Ele nem humano é”. Elisa rebate: “Se não fizermos nada, também não seremos nada”. Mas seu amigo muda de ideia após ser vítima de homofobia, expulso de uma lanchonete porque o local era “de família”, sentindo assim na pele a discriminação por ser considerado inferior. E aqui fazemos mais um paralelo entre o especismo, o filme em questão e o documentário Terráqueos

“Numa analogia com o racismo e sexismo [e homofobia, xenofobia, entre outras formas de discriminação], o termo 'especismo' é o preconceito a favor dos interesses dos membros de uma espécie [que se considera superior] contra os membros de outra [considerada inferior pelos autoproclamados superiores]”, narra o ator Joaquin Phoenix no filme de 2005. Em A Forma da Água, na mesma cena em que Giles é expulso da lanchonete, um casal negro é proibido de sentar ao balcão, exclusividade dos brancos. Em outra cena, o carrasco do Homem Anfíbio assedia Elisa, acreditando que ela, por ser mulher, tem obrigação de se submeter a ele, inclusive sexualmente. 

“Cientista mandará cavalo para voo espacial”, diz a manchete do jornal “lido” pelo cavalo no programa a que o Homem Anfíbio está assistindo: outra modalidade de exploração de animais 
(Foto: Fox Searchlight Pictures / Reprodução)

Em outro momento, a criatura vai ao cinema contíguo à casa de Elisa e Giles e se surpreende 
com a cena de um filme que mostra homens escravizados (considerados inferiores 
por seus “senhores”) sendo chicoteados (Foto: Fox Searchlight Pictures / Reprodução)


E Giles ajuda então Elisa no resgate do Homem Anfíbio, que na última hora ganha ainda os reforços de sua colega de trabalho Zelda (Octavia Spencer, indicada como atriz coadjuvante) e do cientista russo espião (que então prova sua genuína preocupação com a criatura). Elisa e Giles o levam para a casa deles, onde ela pretende mantê-lo até chegar o momento ideal de levá-lo ao mar. Com a convivência, Giles passa a se identificar em outro ponto com a criatura, além da discriminação sofrida: a solidão. E se mostra compreensivo quando o novo hóspede come sua gata: “Ele é um animal selvagem, não podemos pedir que seja outra coisa”. 

Porém ele é outra coisa além de um animal selvagem. Ele é o Homem Anfíbio, um híbrido de animal e humano (e deus, segundo os indígenas). E seu lado humano e a conexão estabelecida com Elisa acabam fazendo com que a criatura e sua salvadora se apaixonem. Quando seus amigos humanos o levam para o mar, o Homem Anfíbio transforma cicatrizes no pescoço de Elisa, resultado de uma violência sofrida quando ela era criança, em guelras, possibilitando que sua amada possa viver sob a água como ele, e com ele. No final das contas, além de homem e animal, a criatura se revela realmente dotada de poderes divinos. Mas nós lembramos que essa divindade reside em cada um dos animais de nosso planeta e, portanto, todos merecem nosso respeito, e não exploração sob qualquer forma. 

Cartaz do filme (Foto: Fox Searchlight Pictures / Reprodução)


Especismo em série e mais causa animal no Oscar 

Outro texto nosso que aborda o especismo em uma obra audiovisual é Fariam?, que identifica essa forma de discriminação na série Sense8. Sobre outro filme indicado ao Oscar deste ano (melhor animação), leia Ferdinando, ativista da causa animal. Já Star Wars: Os Últimos Jedi (Star Wars: Episode VIII – The Last Jedi, 2017), que concorre em quatro categorias (incluindo efeitos especiais e trilha sonora original) ao Oscar 2018, também dá uma importante contribuição à causa animal – leia aqui a matéria do portal Vista-se. Por outro lado, O Rei do Show (The Greatest Showman, 2017), indicado à estatueta por melhor canção original, comete um grande desserviço ao divulgar e glamorizar a vida de uma pessoa que só fez mal aos animais – leia aqui o texto publicado pelo Mimi Veg.


*Paulo Furstenau é jornalista voluntário da Associação Natureza em Forma


[ATUALIZAÇÃO PÓS-OSCAR]

Das 13 indicações, o filme levou quatro estatuetas: melhor filme, direção, trilha sonora original e design de produção.

Nenhum comentário:

Postar um comentário