É assim que se trata um gato



Por Marcella Franco

Quando eu morrer, quero reencarnar gato. E nem preciso passar muito tempo no céu, aguardando o retorno terrestre, porque, em minha vida humana, já pratiquei muito laboratório, de modo que, se for o caso de o departamento responsável estar lendo estas despretensiosas linhas, que, por favor, agendem minha volta para logo em seguida do acontecido, o quanto antes for possível – deve haver um prazo mínimo, não sei, nunca tive acesso à cartilha do desencarne. Enfim. Miau.

Desejo ardentemente, e sobretudo, poder experienciar uma vida em que a atividade fundamental seja apenas uma, e respeitada de maneira soberana por todos aqueles que rodeiam a figura mística de sua excelência O GATO: dormir. Tirar no sofá minha soneca, no peitoral da janela (devidamente telada, porque se eu voltei à vida não é para perdê-la assim por bobagem), em cima do computador ou da TV de tubo que porventura meus tutores acumulem em casa.

Com meu repouso repartido em frações de hora ou hora e meia ao longo do dia, distribuídas estrategicamente de modo a me proporcionar disposição e um corpo não apenas flexível, mas revigorado, utilizarei os 180 minutos restantes para o exercício de práticas fundamentais ao meu desenvolvimento espiritual, e quiçá futuro retorno na forma de capivara, que, a meu ver felino, é um gato gigante e evoluído. Retomo o raciocínio, perdão, costumo divagar em excesso devido ao meu cérebro gigante.

Pois dizia eu que, enquanto gato, procurarei formas de entretenimento baratas, desprezando, assim, toda e qualquer oferenda fruto de transações monetárias com pet shops e grandes redes de produtos para animais de estimação. Manterei meus princípios e moral em todas as minhas sete vidas, prezando sempre pela sustentabilidade e conservação do meio ambiente – em outras palavras, me dá logo uma caixa de mercado e uma mariposa morta, e ficamos conversados.

Dá, também, uma sacola daquelas de papelão mais firme, já ia me esquecendo. Elas fazem ótimos túneis, e representam oportunidades excelentes de diversão quando se tem uma imaginação fértil como a minha. É favor observar que, uma vez eu instalado lá dentro, você deve agir como se não soubesse da minha presença, inclusive fingindo certa dose de desespero, preocupado com meu desaparecimento assim, sem mais nem menos.

Depois dos seis minutos de brincadeira, é de bom tom que alguém me abra a torneira da pia, para que eu possa hidratar o organismo agora exausto de tanto esforço físico – deve ser assim que os maratonistas humanos se sentem. Sei que parecerá insano que eu precise de mais uma fonte de líquido neste apartamento, especialmente quando você se dá ao trabalho de lavar e trocar a água dos meus potes na cozinha. No entanto, há coisas no mundo dos gatos que devem permanecer misteriosas, de acordo com a tradição passada de geração em geração.

Mesmo preceito rege o processo de alimentação como um todo, para falar a verdade. É vedada a explicação do porquê de comidinhas de sachê serem mais apetitosas que a ração seca, ou mesmo o que nos leva a lamber casca de mamão e abacate, tomar susto com pepino e insistir na rúcula orgânica mesmo sabendo que vai causar dores de barriga.

Bem, quer dizer, essa parte eu até posso abrir uma exceção e revelar. Até porque, envolvendo sua lavanderia de maneira tão extrema, considero injusto que apenas uma das partes envolvidas compreenda o real propósito de ingerir determinado item – mato, verdura, cacto – para depois sufocar e cuspir uma bola de pelo no seu edredom ou vomitar em jatos bem no centro do tapetinho do seu banheiro. Pura sacanagem. Pronto, falei.

Enquanto gato futuro, fica definido que, encerrada a palhaçada de ser humano, tenha início um novo e promissor ciclo de vida. Com bigodes ultrassensíveis, almofadinhas nos pés e dentes do tamanho de um arroz anão. Que se normalize o cagar e sair correndo em pânico sem causa definida. As pupilas arregaçadas e a bunda ao ar. O ataque sem respeito hierárquico, os chutes seguidos do abraço, a lambida inexplicável com textura de lixa. Agora é lei.


Foto: Eduardo Knapp / Folha de S. Paulo


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