Testes em animais: ruins e desnecessários



Por Sérgio Greif*


Acabo de ler o artigo parcial publicado no site da Veja Testes com animais: ruim, mas necessário. Infelizmente, não pude ler a reportagem na íntegra porque não sou assinante do site, porém, já pelo título e chamada apresentados, percebemos a predominância do mau entendimento em relação à matéria, o que cabe esclarecer.

A chamada traz o seguinte texto: “A proibição do uso de cobaias em experiências acadêmicas, como propunha uma lei vetada pelo governo paulista, traria prejuízos a toda a sociedade”. Além disso, a chamada traz o texto final: “Reportagem de VEJA debate a necessidade do uso de animais nos experimentos acadêmicos”.

A continuidade da reportagem afirma explicitamente que a lei vetada foi aquela apresentada pelo deputado Feliciano Filho, o PL 706, então não resta dúvida de que há uma confusão no entendimento em relação ao projeto de lei. (Para aqueles que ainda não conhecem, o referido projeto de lei pode ser acessado aqui.)

A própria ementa do PL torna clara ao que ele se refere: “Restringe a utilização de animais em atividades de ensino no estado de São Paulo, sem prejuízo de proibições e sanções previstas em outros dispositivos legais: municipal, estadual ou federal, e dá outras providências”.

Em nenhum momento, o projeto de lei ou sua justificativa se refere a “testes” ou “experimentos acadêmicos” realizados em animais, muito pelo contrário, em seu artigo 1º, o PL torna claro que “a presente lei não se aplica às atividades de pesquisa científica e tecnológica realizadas no âmbito de pós-graduação, aplicando-se, porém, às suas atividades de ensino e formação profissional”.

Disto vemos que a reportagem da Veja em si, além de flagrantemente parcial e panfletária, peca em preceitos jornalísticos fundamentais, como a busca da verdade, a veracidade e a precisão das informações. A matéria trata de assunto distinto ao que o projeto de lei trata.

Resta saber se a insistência no erro conceitual é proposital, por se entender que, quanto menos as pessoas entenderem sobre o assunto, melhor será para a continuidade da utilização de animais, ou se realmente a matéria é assunto tão complicado que as pessoas seguem errando. Outros erros conceituais são amplamente praticados por jornalistas e mesmo acadêmicos, não distinguindo assuntos relacionados ao ensino e à pesquisa.

Tenho trabalhado contra o uso de animais no ensino e na pesquisa, e é flagrante que em momentos oportunos mesmo pesquisadores que têm suas atividades relacionadas à experimentação animal reconhecem que a utilização de animais no ensino já poderia ter sido abolida há muito tempo, restando, porém, a defesa da experimentação animal para a qual, segundo eles, ainda não há alternativas.


É irônico que tantas vezes tenhamos presenciado defensores das pesquisas com animais, na tentativa de vencerem em seus argumentos, reconhecerem a não necessidade de uso de animais no ensino, e que agora eles mesmos estejam dizendo não ser possível abolir o uso de animais também nessa categoria. E os argumentos são facilmente desconstruídos.

De reunião que tivemos com representantes da Unicamp, o deputado Feliciano e eu, escutamos que seria necessário validar cada método substitutivo no ensino no Brasil, comparando-os aos métodos que utilizam animais, antes de substituir a utilização de animais por completo, e que a academia estava sendo pega de surpresa por esse PL, pois repentinamente eles estavam sendo forçados a substituir completamente animais no ensino.

Ora, em primeiro lugar, o elemento surpresa não existe, há anos existe o debate pela substituição de animais no ensino e na pesquisa, e pelo menos no que diz respeito ao uso de animais no ensino há anos que as listas de métodos substitutivos estão facilmente disponíveis. Há anos que a sociedade manifesta completo apoio ao fim do uso de animais no ensino e também nas pesquisas.

A esse respeito, escutei que se adotássemos esses métodos substitutos criados em outros países, estaríamos sempre nos colocando na dependência da tecnologia estrangeira, pois a maior parte desses métodos não havia sido desenvolvida no Brasil. Ora, tampouco as metodologias que utilizam animais foram desenvolvidas no Brasil, e a maioria das linhagens de animais criadas nos biotérios provém de matrizes estrangeiras.

O argumento pela xenofobia, tipo “Policarpo Quaresma”, não se sustenta, pois não é aplicável a outros aspectos de nossas atividades de pesquisa e ensino. A ciência e a medicina praticadas no Brasil são a ciência e a medicina ocidentais, não a ciência e a medicina brasileiras. E a maioria de nossos pesquisadores, em algum momento, recorre às universidades estrangeiras para obter títulos. Portanto exemplos de outros países nos servem muito bem e fazemos uso deles corriqueiramente.

No caso especifico da substituição de animais no ensino, esses exemplos são ricos em demonstrar que, além de seu motivo mais importante que é o de poupar a vida de milhões de animais, tais histórias mostram que, além de possível, essa substituição é benéfica para os propósitos educacionais e para a formação do caráter dos estudantes.


A revista Veja foi infeliz em seu texto, não apenas por confundir pesquisas científicas com o ensino de ciências, mas também por não haver perdido a oportunidade de supervalorizar o uso de animais na ciência, descrevendo-o como essencial para seu progresso.

Já tivemos a oportunidade de expor questões relativas à história da ciência e ao quanto que as descobertas científicas relevantes na medicina em verdade devem a outros fatores subestimados que acabam sendo negligenciados em detrimento da valorização da experimentação animal.

Para trazer um exemplo ilustrativo, durante o século 20, algumas empresas concessionárias de estações de tratamento de água passaram a empregar carpas e outros peixes para avaliar as condições finais de seu efluente a ser distribuído. Muitas pessoas como eu poderão questionar se tais testes são realmente necessários, mas ninguém poderá negar que, efetivamente, toda a água distribuída pelas referidas empresas é testada em animais.

Com os medicamentos citados na reportagem da Veja, é exatamente a mesma coisa, pois não tenho como desmentir o fato de que todos foram testados em animais nem tenho interesse de fazê-lo. O ponto a que me atenho é o questionamento de se tais testes foram em algum momento necessários, se foram úteis para atestar sua segurança e eficácia.

A supervalorização, especificamente, está na distorção da história, pois se atualmente utilizamos carpas para avaliar as condições da água, não foram os testes em carpas que iniciaram o consumo de água pela espécie humana, nem pode alguém utilizar o argumento que se utiliza com medicamentos quando alguém se diz contrário às pesquisas com animais: “Ah, mas se você é contra os testes em animais, não deveria beber água”.

O argumento soa tosco porque é realmente tosco, mas enquanto não houver um questionamento sério, enquanto tal argumento não for rebaixado à sua categoria de falácia, continuaremos escutando-o, não só de importantes veículos de comunicação, mas também de acadêmicos e políticos.


*Sérgio Greif é biólogo formado pela Unicamp, mestre em alimentos e nutrição com tese em nutrição vegetariana pela mesma universidade, professor do Instituto de Pós-Graduação e Graduação (Ipog), especialista em gerenciamento ambiental pela Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da Universidade de São Paulo (USP), ativista pelos direitos animais, vegano desde 1998, consultor em diversas ações civis públicas e audiências públicas em defesa dos direitos animais. Coautor do livro A Verdadeira Face da Experimentação Animal: A sua Saúde em Perigo e autor de Alternativas ao Uso de Animais Vivos na Educação: Pela Ciência Responsável, além de diversos artigos e ensaios referentes a nutrição vegetariana, modo de vida vegano, direitos ambientais, bioética, experimentação animal, métodos substitutivos ao uso de animais na pesquisa e na educação e impactos da pecuária no meio ambiente, entre outros temas, sobre os quais também realiza palestras. Membro fundador da Sociedade Vegana.

Fonte: Olhar Animal

Fotos: Reprodução


NOTAS DA NATUREZA EM FORMA:

1. "Nenhum aluno precisa participar de aulas que envolvam animais vivos. Nenhum professor ou diretor pode puni-los, tirar pontos ou reprová-los por isso, pois você está amparado pela lei. Isso se chama objeção de consciência." Saiba mais a respeito no site da ONG brasileira PEA (Projeto Esperança Animal). Clique aqui

2. E todos nós podemos fazer nossa parte. Testes em animais são realizados não apenas no ensino e indústria farmacêutica, mas também na indústria de alimentos, cosméticos etc. Não compre dessas marcas. Compre somente daquelas que não testam. A ONG PETA (sigla em inglês para Pessoas pelo Tratamento Ético aos Animais) tem listas com algumas dessas empresas, multinacionais em sua maioria, que testam e que não testam em animais.  

Já a PEA lista empresas brasileiras que não fazem testes

E nós ressaltamos um lembrete da PEA, que vale tanto para sua lista quanto para as listas da PETA: todas elas incluem empresas que testam ou não testam em animais, mas não levam em consideração a composição dos produtos, que pode ter algo de origem animal (exemplos: leite, mel etc.). O boicote ideal para quem realmente quer poupar os animais de quaisquer sofrimentos é aquele que exclui da lista do supermercado e da farmácia todos os produtos que são testados em animais ou usam algo tirado de seus corpos, ou seja, que os exploram de alguma maneira. Isso é o veganismo. Seja vegano!

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