Sobre araras, crack e indignação seletiva

    Foto: Instagram / Reprodução


Por Paulo Furstenau*


Quem está a par das notícias nos últimos dois dias certamente já leu sobre a festinha "tropical" dada pela atriz colombiana Sofia Vergara, que interpreta a personagem Gloria no seriado Modern Family, em Los Angeles (Califórnia, EUA), no último domingo (28 de maio de 2017). 

Com o pretexto de mostrar a seus amigos de Los Angeles "um pouco da beleza da cultura latina", ela usou em sua festa araras vivas e amarradas pelas patas, que, pelo que se vê nas fotos, eram passadas de convidado para convidado como se fossem uma exótica e divertida atração.

Como ainda existem algumas pessoas com um mínimo de sensatez, não tardou para que as fotos com os animais postadas no Facebook e Instagram da atriz recebessem uma enxurrada de críticas expressando revolta com o abuso - muitas de brasileiros que se sentiram ultrajados pela "representação", que incluiu até apresentação de samba.

E logo a atriz postou um texto de agradecimento aos envolvidos na produção do show de horrores. Traduzimos a seguir o trecho referente à empresa fornecedora das araras:

"(...) Obrigada também à Pirates for Parties pelos incríveis pássaros, uma empresa muito séria e respeitosa com as aves. Eles têm todas as permissões, cuidados veterinários e dão a melhor alimentação para os animais. Eles também usam treinamento afetivo em vez do treinamento comum (esses pássaros querem ser abraçados por humanos). Essa é uma companhia de refúgio e todos esses pássaros estão lá como último recurso. Eles vivem bastante e geralmente até mais do que seus donos, e é assim que terminam lá. Essa empresa também faz isso como uma forma de conscientizar sobre a extinção dos pássaros. A extinção está acontecendo devido ao desmatamento da Floresta Amazônica para a criação de gado. Expor esses pássaros ao público faz as pessoas se lembrarem de que eles existem e devemos cuidar deles".

Recados para Sofia

Vamos lá, Sofia. Em primeiro lugar, como você mesma disse, trata-se de uma empresa, não um "refúgio" ou santuário. Santuários são lugares para onde são levados animais silvestres e selvagens em situação de risco ou feridos, que são recuperados para serem reintroduzidos na natureza. Dependendo de seu estado de saúde, caso não possam voltar para seu ambiente natural, permanecem no santuário, com os devidos cuidados e vivendo livres até o fim natural de suas vidas. Animais de abate resgatados de matadouros também são levados para santuários, onde viverão da forma que todos os animais devem viver: livres, sem exploração e sem dor, até partirem deste planeta devido à velhice.

Mas a "Piratas para Festas", como o próprio nome diz, além de estar bem longe de ser um santuário, é uma empresa que explora animais para exibição. Você já foi a um zoológico, Sofia? É o mesmo conceito. Pode até ser que a empresa contratada para... animar sua festa tenha "todas as permissões" para reter e usar esses bichos, e que o tal "treinamento afetivo" não seja o mesmo empregado em zoológicos e circos de animais, porém, amarrar patas de qualquer animal e levá-lo a concentrações de pessoas repletas de barulho (vulgo festas) pode até ter todas as permissões (lembramos que zoológicos, circos, aquários etc. também têm) de todos os governos insensíveis do mundo, mas definitivamente não tem NADA de "respeitoso" ou "afetivo". E, pode ter certeza, ao contrário do que você acredita, esses pássaros NÃO querem ser "abraçados por humanos"!!

A empresa em questão expõe os animais para "conscientizar" e nos lembrar de que "devemos cuidar deles"?? Você realmente acredita nisso, Sofia? Ou regurgitou esse disparate apenas para ficar bem na foto? Se, por acaso, for mesmo ingênua a esse ponto, você ao menos se deu o trabalho de entrar no site deles? Nós, sim. Bom, não tivemos nenhuma surpresa em encontrar, entre os serviços oferecidos pela "Piratas para Festas", a "festa de papagaios" e o "show de papagaios", sempre com um número de contato para o "aluguel de animais exóticos". Sim, eles certamente têm muito afeto por essas aves, afinal elas lhes proporcionam tudo aquilo que consideram importante na vida: dinheiro.


E quanto a todos nós?

      Foto: Fabien Nissels


A repercussão desse lamentável episódio nos dá um gancho para mais uma vez falarmos sobre a indignação daqueles que propalam aos quatro ventos que "amam os animais", mas diariamente são cúmplices dos atos mais bárbaros e cruéis contra eles. Pessoas que se revoltam ao ver fotos de araras amarradas pelas patas para serem usadas como atração de festa, mas que postam fotos de animais mortos em seus pratos, com legendas como "bacon é vida". 

Acontece que o "bacon é vida", o bifinho suculento, o burgão etc. etc. vieram de animais que passaram por dores e sofrimentos tão abomináveis que fazem a exploração dessas araras parecer um aprazível voo por um lindo e vasto céu azul. Que indignação seletiva é essa? Por que amar - e defender - uns e comer outros? Mais uma vez perguntamos: qual a diferença?

Mas afinal, por que citamos o crack no título deste texto? Porque outro destaque da mídia nesta semana está sendo Andreas von Richthofen, o irmão de Suzane, que foi encontrado sujo, machucado e sob efeito de drogas. E tal notícia nas redes sociais logo recebeu comentários de pessoas solidárias ao rapaz, chocadas com seu destino. Em seguida, vieram outras tantas rebatendo, dizendo que alguns só se impressionam porque ele é branco e de família rica, que há indivíduos em situação de miséria, vício e abandono muito pior, mas não receberam os holofotes midiáticos na recente ação da Prefeitura de São Paulo na Cracolândia porque são pobres e, em sua maioria, negros. Esses críticos acusam de indignação seletiva aqueles que se compadecem de Andreas. 

Hoje, as redes sociais são povoadas por críticos e juízes senhores da razão, de todos os lados: nesse caso, há os defensores dos miseráveis da Cracolândia e detratores da dita "burguesia" que se perdeu no vício e, no time rival, há os que acusam de partidários políticos quem repudia ações como essa recente contra os craqueiros ("o prefeito Fulano fez igual e ninguém falou nada" - vide alguns comentários sobre a nota que publicamos em nosso Facebook), como se (a verdadeira) compaixão estivesse ligada a classe social ou partidos políticos. Mas o teor das acusações trocadas é sempre o mesmo: indignação seletiva.

E certamente, entre esses críticos (seja de qual lado for) do assunto Cracolândia, há muitos que também se manifestaram sobre a ignóbil festinha de Sofia Vergara - afinal, juiz de rede social que se preze delibera e julga diversas pautas. Bom, segundo dados divulgados pelo Ibope Inteligência em outubro de 2012, 8% da população brasileira é adepta do vegetarianismo. Levando-se em consideração que esse número não tenha se elevado significativamente desde então, deduzimos que a grande parte desses críticos seja formada por comedores de carne. Que atacam a total falta de sensibilidade e bom senso da atriz com os animais, mas que, eles próprios, financiam crueldades infinitamente maiores com o simples ato de comer um cachorro-quente, usar um casaco de couro ou ir a um show de golfinho, apenas para citar alguns exemplos básicos. Qual expressão formada por duas palavrinhas pode definir essa incoerência?

A todo esse pessoal, que só fala, fala, fala, aponta o dedo, aponta o dedo, aponta o dedo, mas de concreto não faz absolutamente NADA pelos outros ou pelo mundo, recomendamos um pouco de autoanálise, que olhem para seus próprios atos e mudem suas atitudes em relação aos outros - em especial sobre os animais, aqueles quem nós, da causa animal, defendemos em primeiro lugar, pois precisam muito de ajuda e não têm voz para se defender. Mudanças de hábito que podem parecer difíceis, mas não são. Todos nós que realmente amamos os animais e não os exploramos (direta nem indiretamente) já passamos por isso: não nascemos sabendo, nos conscientizamos em algum momento e decidimos mudar por eles. Ao longo deste texto, colocamos diversos links com informações importantes sobre por que devemos mudar e como podemos fazer isso. Aqui no blogue, publicamos diariamente mais e mais informações. Elas estão amplamente disponíveis aqui e por aí, basta querer para sair dessa cegueira seletiva.

E para aqueles que eram fãs de Sofia Vergara e gostam de séries e filmes, recomendamos ainda que vejam Terráqueos (Earthlings, 2005), com narração de Joachin Phoenix e trilha sonora de Moby. Clique aqui e veja na íntegra, com legendas em português. E também o nacional A Carne É Fraca (2004), produzido pelo Instituto Nina Rosa. Depois desses, há vários outros que merecem ser vistos. Tem mais alguns aqui.

Leiam, assistam, reflitam, julguem menos e façam mais!


*Paulo Furstenau é jornalista voluntário da Associação Natureza em Forma

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