A crueldade das fábricas de filhotes


CONFINADO - O pequeno shih tzu estava entre os filhotes mantidos num criadouro fechado por fiscais em Diadema, São Paulo. Sua gaiola não tinha nem água (Foto: Jefferson Coppola / VEJA)



Parados diante de um cortiço em Diadema, na região do ABC Paulista, policiais e agentes da prefeitura tiveram de esperar vários minutos antes que um casal finalmente atendesse à porta. Informados de que se tratava de uma fiscalização provocada por denúncia de maus-­tratos em animais, o homem e a mulher conduziram o grupo a um cômodo de menos de 10 metros quadrados, fétido e sem janelas, onde estavam presos quatro cães, incluindo um casal de chow chows. Disseram que era tudo que havia ali. Pouco depois, no entanto, os fiscais ouviram um ganido. Guiados pelo som, subiram uma escada e depararam com mais de 20 cachorros amontoados em um quartinho. Filhotes de shih tzu e chow­ chow encontravam-se confinados em gaiolas sem água e cobertos de ração misturada a fezes. Os animais adultos, soltos pelo cômodo, estavam com aspecto ainda pior – muitos apresentavam dermatite, inflamação da pele provocada pela falta de higiene. Uma cadela da raça chow chow tinha a epiderme repleta de fungos.

A batida só aconteceu por causa de uma denúncia feita semanas antes. Em 28 de abril, a designer gráfica Andrea Pignatari comprou pela internet um filhote de shih tzu, pelo qual pagou 750 reais. Um dia após a chegada de Pepito, ela percebeu que ele estava infestado de carrapatos e pulgas. Fraco, o filhote mal comia. De seus olhos, escorria uma secreção. O veterinário receitou alguns remédios, mas o cachorro não melhorava. Duas semanas depois, Pepito começou a tossir e vomitar. Durante cinco dias ininterruptos, Andrea levou-o ao veterinário. No quinto, esperava a ligação do médico para saber o resultado de uma bateria de exames quando recebeu a notícia de que Pepito tinha morrido – de cinomose, uma doença contagiosa evitável com vacina. “Já me havia apegado a ele”, diz Andrea. Ela contraiu dívidas para pagar os mais de  três mil reais de despesas com remédios e veterinário.

Não se trata de um caso isolado. Neste ano (2015), agentes de fiscalização resgataram animais em condições semelhantes em pelo menos cinco estados – Bahia, Minas Gerais, Paraná, São Paulo e Santa Catarina. Na região metropolitana de Curitiba, onde a fiscalização de criadouros é mais frequente, quatro das últimas cinco inspeções detectaram problemas graves. Na mais recente (assim como na de Diadema, acompanhada por VEJA), mais da metade dos 146 cães de raças diversas criados no local apresentava doenças de pele. Dois em cada 10 estavam subnutridos e em 16 das 22 baias avaliadas pela fiscalização foi constatada a ocorrência de maus-tratos. Eram cães de raças como pug, spitz alemão, poodle, yorkshire, beagle, maltês e pinscher.

Os flagrantes realizados até agora mostram que se dissemina no Brasil uma versão local de um mal que vem sendo combatido há alguns anos nos Estados Unidos e na Europa – as chamadas puppy mills, ou, numa tradução livre, fábricas de filhotes. São criadouros clandestinos ou não fiscalizados onde os cachorros – sobretudo os adultos, criados não para ser vendidos, mas para reproduzir-se e dar lucro – vivem em condições insalubres e são forçados a procriar no limite de suas forças. Entidades dos Estados Unidos estimam em mais de 10 mil o número de puppy mills existentes naquele país. Desde 2008, ao menos 14 estados aprovaram leis que exigem licenças especiais e fiscalização periódica para coibir os maus-tratos em criadouros voltados para a venda de filhotes. Algumas cidades tomaram medidas mais radicais: em Phoenix, no Arizona, por exemplo, a corrente de protetores de animais que defendem a proibição da comercialização de animais de estimação conseguiu uma vitória: proibir que pet shops vendam animais vindos de criadouros. As lojas só podem oferecer filhotes originários de abrigos, ou seja, que foram recolhidos nas ruas ou abandonados por seus tutores.

Na Europa, é em países do leste, como Polônia, Romênia, Hungria e Lituânia, que se localiza a maioria dos criadouros clandestinos. Um filhote que custa 100 euros nesses lugares, onde a fiscalização praticamente inexiste, pode ser revendido por um preço até 10 vezes maior em países mais ricos, como Alemanha e França. No Reino Unido, o número de animais contrabandeados do Leste Europeu subiu de dois mil para 12 mil entre 2011 e 2013.

No Brasil, a lei exige que todo criadouro comercial tenha uma licença e um veterinário responsável. Na prática, porém, a maioria trabalha sem uma coisa nem outra. Órgãos oficiais especializados no combate aos maus­-tratos em animais costumam lidar com casos isolados – como o do vizinho que denuncia o outro por tratar seu animal com crueldade. Em São Paulo, a Divisão de Investigação sobre Infrações de Maus-Tratos a Animais e Demais Crimes contra o Meio Ambiente, da Polícia Civil, não tem nenhuma investigação em andamento sobre problemas em criadouros.

O fenômeno das puppy mills chegou ao Brasil no rastro da expansão do mercado pet, que cresceu três vezes mais que a economia na última década. Mesmo neste ano, com o esperado recuo de mais de 3% no PIB, o segmento deve expandir-se até 7%. Se a previsão da Associação Brasileira da Indústria de Produtos para Animais de Estimação se confirmar, a proporção de cães de estimação por habitante no País, hoje de um para quatro, será de um para três em cinco anos – superior à dos Estados Unidos (um para quatro habitantes), México (um para cinco) e Japão (um para 12).

O aumento do mercado pet na última década também fez crescer o número de raças no País – 33 delas surgiram nos últimos 10 anos – para um total de 177. Houve ainda uma mudança significativa na predileção dos compradores. O pequinês e o dálmata, as raças favoritas de anos atrás, foram ultrapassados pelo buldogue francês e pelo spitz alemão anão, os xodós do momento.

A classe C foi fundamental para alavancar esse mercado. Muitos dos brasileiros que ascenderam à classe média, e que até a chegada da crise econômica tinham adquirido um plano de saúde e colocado o filho na escola particular, passaram a querer também um cachorrinho de raça. Isso levou ao aumento da demanda, mas os altos preços das pet shops mais sofisticadas – onde um filhote pode custar mais de 10 mil reais – empurraram parte da clientela para a internet, em busca de barganhas.

O canil fechado no Paraná, que aparece no começo desta reportagem, vendia filhotes pela internet a todo o País e os fornecia a uma pet shop local – o que significa que aquele cãozinho encantador visto nas lojas, penteadinho e com laço de fita no pescoço, pode ter passado por maus bocados antes de chegar à vitrine.


Fonte: Veja

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